O papel das agências reguladoras | Simone Tebet
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A nova esperança
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O papel das agências reguladoras

 Crédito: Pixabay
Anac: um estudo de caso

Qual a razão de ser das agências reguladoras? Elas existem para regular setores sensíveis da economia, que atuam preponderantemente em forma de monopólio ou oligopólio – por isso mesmo, foram, em sua maioria, criadas (pelo menos no Brasil) quando o Estado se retirou da atividade direta em segmentos que, até então, eram por ele geridos ou diretamente controlados. A essência de sua atividade, portanto, consiste em defender os direitos e os interesses dos consumidores numa relação econômica por definição assimétrica.

Até a criação das agências, esses segmentos produtivos funcionavam ou em regime de monopólio estatal, ou estritamente controlados pelos poderes eleitos do Estado – ou seja, pelos representantes legítimos do povo. Enquanto monopólios estatais, esses atores econômicos, pelo menos em tese, não visavam primordialmente o lucro, mas o interesse dos cidadãos ou o interesse da economia nacional como um todo.

Do lado do Poder Executivo, esse poder (produtivo ou regulatório) se exercia por meio dos ministérios afins, cujos titulares eram (e são) indicados pelo Presidente da República, cuja legitimidade nasce da soberania popular por meio do voto.

Houve, portanto, uma mudança de paradigma, e, agora, as empresas que atuam nesses setores sensíveis não têm mais sua atuação regulada por autoridades diretamente eleitas; ao contrário, sua relação com a população é agora mediada pelas agências, cujos quadros se compõem de uma mistura de burocracia clássica (com todos os problemas das corporações e dos seus interesses próprios) e de indicações políticas (que, como sabemos, são bastante sensíveis à captura por interesses privados, ainda que os dirigentes das Agências passem por sabatina no Senado Federal (o que não exclui, portanto, a nossa responsabilidade).

Nesse sentido, podemos dizer que as agências só conseguirão alcançar sua plena legitimidade perante os consumidores (e cidadãos) por meio de sua atuação, como diz o ditado, não deve só ser honesta, mas parecer honesta e demonstrar honestidade em cada ato. Ou seja, no caso das agências, cada uma delas deve demonstrar, em cada atuação ou resolução, que está agindo precipuamente na defesa dos interesses da população.

Não é o que temos presenciado, a olhos vistos. As resoluções impostas pelas agências chegam a ter cabeça, corpo e capítulos de lei. Aos consumidores, resta o “cumpra-se”.

Cito, como objeto de análise, o caso das alterações impostas pela Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, por meio da Resolução nº 400, de 13 de dezembro de 2016.

Cabe lembrar que a ANAC dedicou tempo e esforços não desprezíveis, antes da entrada em vigor dessa Resolução, para convencer a população das “vantagens” da nova regulamentação, num trabalho de propaganda que raras vezes vi ser adotado por agências equivalentes.

Sem examinar em detalhes cada uma das últimas medidas levadas a efeito pela ANAC, salta aos meus olhos de consumidora desconfiada, cidadã vigilante e representante do povo: tudo o que pode representar custo (financeiro ou de tempo) para as empresas aéreas, atinge apenas uma parcela pequena (e incerta) dos consumidores – como é o caso, por exemplo, do overbooking, ou da devolução ou ressarcimento de bagagens extraviadas; já o que representa custo para o passageiro (e, portanto, lucro para as empresas), atinge, praticamente, a universalidade do conjunto dos consumidores – não preciso dizer que me refiro, aqui, à instituição de cobrança sobre as bagagens despachadas, serviço que, desde que me entendo por gente (ou, pelo menos, viajante), sempre foi, respeitados certos limites, considerado como incluído no preço da passagem.

Ora, até que me convençam do contrário, a instituição de um preço por um serviço que era tradicionalmente prestado de forma gratuita (ou, como disse, embutido no preço do serviço principal), sem que, por isso, o consumidor receba qualquer tipo de serviço ou benefício adicional, não passa de aumento de preço disfarçado, não importa que outro nome queiram lhe dar.

A mim, parece evidente que – salvo em casos de viagens muito curtas, ou de emergência, ou outros casos minoritários – uma bagagem mínima é parte inerente de uma viagem, tanto quanto o corpo do viajante. Embora essa última indagação possa parecer algo jocosa, ou uma redução ao absurdo, na verdade creio que ela toca – e torna mais visível, por sua forma algo exagerada – a essência da questão: estamos diante de um aumento de preço que não ousa dizer seu nome.

Por outro lado, as medidas que se diz serem adotadas em benefício do consumidor, ou são já obrigação de qualquer companhia séria (como, por exemplo, o cuidado com o extravio, furto ou avaria das bagagens), ou não representarão, para as empresas, adicional significativo de custo – ao passo que, nunca é demais ressaltar, o aumento indireto do preço das passagens, com a instituição de cobrança sobre o transporte de bagagens, atinge diretamente a todos e cada um dos consumidores (e beneficia, é claro, todas e cada uma das empresas).

Quem propôs essas medidas que impõem um aumento de custo a todos os consumidores foi um agente público que, em teoria, tem por obrigação defender os interesses desses consumidores.

Não posso deixar de me referir, mais uma vez, ao caso do chamado overbooking, que me parece particularmente grave. Ora, que benefício tem o passageiro, que pagou por sua passagem, vê-la transformada em um mero pedaço de papel sem valor, porque a empresa aérea vendeu mais passagens do que lhe era permitido? No meu entendimento, benefício nenhum; quando muito, reparação de um dano. A ANAC somente cumpriria o seu dever para com o consumidor se tomasse medidas realmente enérgicas para banir esse tipo de atitude, punindo severamente as empresas que a adotassem, e não apenas prevendo o ressarcimento ao passageiro lesado.

Já ouvi alegações de que a desobrigação das empresas de carregar bagagens “gratuitamente” (já disse que não concordo com essa definição) iria acarretar a redução generalizada no preço das passagens aéreas. Ora, além de ter sido por si incerto (ou, como diz o ditado, trocar o certo pelo duvidoso), nós, brasileiros, temos vasta experiência de frustração em situações semelhantes. Todos esperávamos, por exemplo, que o preço da maioria dos produtos baixasse com a extinção da CPMF. Eu, pelo menos, não tive o prazer de ser apresentada a nenhum quilo de feijão, ou arroz, mais barato por causa disso.

A história se repete. Não houve diminuição do preço das passagens aéreas. E o que é pior: a resolução pela cobrança tem causado dissabores para os viajantes. Não há espaço suficiente, no interior das aeronaves, para acomodar as bagagens não por acaso chamadas “de mão”. Bagagens que, na maioria das vezes, não carregam somente, o “necessário”. Carregam o imprescindível, o imediato. Carregam também a intimidade da qual ninguém deseja se separar. Bagagens para as quais não há necessidade de cadeados, mas que são mandadas ao porão, acompanhadas pela cumplicidade da omissão da ANAC.

A ANAC agora sinaliza com novos prazos para avaliar de forma mais criteriosa se a cobrança pelo transporte de bagagens barateou ou não as tarifas aéreas. O que era imediato se estendeu para cinco anos. Enquanto isso, no radar das empresas aéreas, o que se vê é aumento de preços das passagens (segundo a própria ANAC, 7,9% no primeiro trimestre, numa comparação com igual período do ano passado).

O Tribunal de Contas da União abriu “auditoria de conformidade” para verificação dos resultados da medida. A Ordem dos Advogados do Brasil anunciou um novo recurso, com pedido de decisão liminar, a fim de interromper tal cobrança. Também o Ministério Público e o Poder Judiciário demonstram estar atentos ao assunto. O Senado Federal aprovou Projeto de Decreto Legislativo que sustou a vigência dessa norma em particular (cobrança por bagagem despachada), o que agora depende de decisão da Câmara dos Deputados – o projeto se encontra em análise na Comissão de Viação e Transportes daquela Casa, apensado a outras dezenove proposições legislativas que tratam da mesma Resolução 400, da ANAC. Também está na Câmara dos Deputados o Projeto da Lei Geral das Agências Reguladoras, o qual tive a missão de relatar no Senado Federal. A proposta representa um marco jurídico adequado à atuação das agências e fixa regras claras para o preenchimento das diretorias das agências.

Portanto, se há algo de positivo nesse voo errante da ANAC, pelo menos ele suscitou o debate interinstitucional sobre a atuação das agências reguladoras. Um debate sobre temas dos mais importantes para a realidade brasileira. Afinal, são elas que cuidam da simetria entre empresas e consumidores, além da aviação civil, nos ramos das telecomunicações, da energia elétrica, do petróleo, dos transportes, da vigilância sanitária, da saúde…   Da vida, enfim.

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