Senadora diz que o MDB se corrompeu, mas que podem surgir novos líderes da crise
Por Monica Gugliano — Para o Valor, de Brasília
Na escaldante tarde de sol a pino em Brasília, vendo a poeira vermelha se espalhar em redemoinhos de vento entre os prédios da cidade, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) bebe um gole da xícara de chá quente na Backerei Karim, misto de padaria, café e bistrô, a poucos metros do prédio onde mora, na conhecida popularmente como Quadra dos Senadores, em Brasília. Logo no início deste “À Mesa com o Valor”, comenta que sua vida virou uma “correria” desde que assumiu, no começo do ano, a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). “É o coração e o pulmão da Casa.” Foi Simone quem abriu na terça-feira a sessão que aprovou a reforma da Previdência.
Na metade de seu primeiro mandato, a senadora já exibe a desenvoltura dos veteranos na Casa. Na CCJ, imprimiu um estilo em que não há espaço para as acaloradas discussões que muitas vezes acabam em confrontos e agressões que se tornaram habituais no Congresso. Conduziu com mão de ferro o depoimento do ministro Sergio Moro (Justiça), que fora criticado pelos deputados.
Simone não chega a ser uma representante do “novo na política”, que renovou 87% do Senado e 52% da Câmara dos Deputados na última eleição: o sangue da política, corre desde a juventude na mais velha dos quatro filhos de Fairte Nassar Tebet e do senador Ramez Tebet (1936-2006). Aos 49 anos, traz em seu currículo um mandato de deputada estadual e o comando da Prefeitura de Três Lagoas (MS), cidade natal dela e de sua família. “Foi e é difícil ser política tendo uma figura de referência como meu pai. Ele era um símbolo de tudo que a boa política representava no país. Agora estamos numa escassez danada de valores”, afirma.
A senadora Simone Tebet toma café no Backerei Karim, misto de padaria, café e bistrô perto de sua casa, em Brasília — Foto: Denio Simões/Valor
Ramez Tebet foi prefeito de Três Lagoas (MS), governador do Mato Grosso do Sul, presidente do Senado e ministro da Integração no governo de Fernando Henrique Cardoso. Assumiu a presidência do Senado, em 2001, quando o cargo ficou vago após a renúncia de Jader Barbalho (PMDB-PA), envolvido em uma série de denúncias de corrupção e enriquecimento. Nessa época, o partido, fundado em 1966, já deixara em um passado longínquo sua história construída na resistência à ditadura e nas bandeiras de luta pela democracia e pelos direitos civis.
Entretanto, o partido ainda não estava associado aos escândalos de corrupção que levaram muitos dos caciques da sigla à prisão. “A partir do momento em que o MDB, nos últimos 10, 15 anos, deixou de cumprir o papel de vigilante da democracia e se acomodou diante de um sistema que a tudo compra e a todos seduz, ele não só se corrompeu, mas deixou de ser o baluarte da estabilidade política”, diz Simone.
O pai da senadora passou por todas as versões da sigla que foi MDB em sua origem, virou PMDB e, no ano passado, retomou a sigla inicial. Conviveu com os nomes tidos como históricos, Ulysses Guimarães (1916-1992), Pedro Simon, Paulo Brossard (1915-2015). Mas também viu e participou do partido que assumiu seu papel de personagem central na política brasileira, aliado aos governantes de plantão. Com exceção de Fernando Collor, todos os demais presidentes tiveram a companhia dos membros da sigla em seus governos.
Na entrega do relatório da reforma da Previdência no Senado — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
“Trocamos qualquer bandeira ideológica por ministérios e benesses, até chegarmos ao cargo de vice-presidente da República”, diz Simone, referindo-se a Michel Temer, vice-presidente de Dilma Rousseff que chegou à Presidência após o impeachment da petista.
Simone passou os quatro primeiros anos na Casa mais ouvindo do que falando. Mas, desde o início do novo ano legislativo, diz que se sentiu mais segura. Tanto que resolveu confrontar o senador Renan Calheiros (MDB-AL), um dos mais influentes caciques do partido, na disputa pela indicação do nome da legenda que disputaria a presidência do Senado. “O partido foi se desintegrando em nome de um grupo fisiológico, e sempre tentei reagir. O último ato dessa saga foi quando resolvi enfrentar Renan”, afirma.
Antes de chegar à disputa que rachou o MDB, Simone diz que tentou convencer Calheiros de que ele perderia se sua candidatura chegasse ao plenário. “Falei com ele e lhe disse: ‘As ruas estão falando ‘fora Renan’. Se não percebermos que o senhor apenas capitaneia um sistema que não deu mais certo, o MDB vai morrer’. Mas não houve esse entendimento”, recorda a senadora.
Na sabatina do novo procurador-geral da República, Augusto Aras — Foto: Renato Costa/FramePhoto/Folhapress
O MDB não morreu com essa derrota, mas Calheiros – que na disputa interna empatara com Simone por 6 a 6 – perdeu a presidência da Câmara para um novato: Davi Alcolumbre (DEM-AP). Oito meses após essa eleição, que, para ela, significou a renovação da política, Simone diz acreditar que o Senado caminha para dar uma nova decepção aos brasileiros. Afirma que a esperada renovação que Alcolumbre representava não está ocorrendo. “Sinto-me indignada porque voltou a prevalecer na Casa a pauta interna, voltada para os interesses corporativos. Mais uma vez, os interesses da nação estão sendo deixados de lado”, afirma.
Para Simone, Alcolumbre, que preferiu não comentar as afirmações de sua colega e ex-conselheira ao Valor, está deixando de lado a transparência, o combate à corrupção e uma agenda desenvolvimentista e que, com isso, está enfraquecendo a Casa e a democracia. Ainda assim, pondera que o presidente do Senado pode, por enquanto, receber o benefício da dúvida, e que, da mesma forma que ocorre com o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), ele precisa introjetar o cargo que ocupa. “O Davi tem que vestir o terno de presidente do Senado. Tem que mostrar à sociedade que a Casa mudou”, observa.
Se isso não ocorrer, o risco à democracia, pondera ela, será maior do que em outros momentos da história recente. Isso porque a população, em sua opinião, já começou a se sentir decepcionada e a perder a esperança com Bolsonaro, que se contradiz entre o que afirma e prometeu e o que faz no governo. “Da indicação do filho Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington ao tom desrespeitoso com que ele trata supostos adversários, chefes de Estado e outras autoridades, tudo é uma decepção”, afirma. “Sem falar quando ele, contrariado, põe as redes sociais e a parte da sociedade que o apoia contra o Congresso Nacional, contra a imprensa e outros.”
Em conversa com o senador José Serra (PSDB-SP) durante sessão — Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
A previsão da senadora é a de que a indicação de Eduardo Bolsonaro volte à pauta agora, passada a votação da reforma da Previdência. E, embora discorde da indicação, acha que o nome será aprovado por causa da radicalização que enxerga na sociedade brasileira. “Vejo o mandato de Bolsonaro como um governo de transição porque a sociedade brasileira não é radical nem para um lado nem para o outro”, diz.
A eleição presidencial de 2018, em sua opinião, foi o resultado de uma “decepção muito grande com os políticos e com toda essa estrutura de poder que existia”, afirma. “Neste momento, até pode ser uma sociedade que concorda em aumentar penas para os criminosos, mas não a vejo carregando armas no carro, como muitos acreditam que pode acontecer.”
Simone já tomou o chá e um rapaz no balcão pergunta se ela gostaria de repetir. Mas, àquela altura, tomar outra bebida quente parece impossível. O calor aumentou e, dentro do bistrô, não há ar-condicionado e tampouco ventilação adequada ao clima da cidade. Ainda assim, ela gosta do lugar onde compra pão de fabricação artesanal e, quando “a dieta permite”, come um doce.
Em reunião da comissão de combate à violência contra a mulher — Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Durante esta entrevista, tentou resistir. No entanto, o balcão de vidro que expõe tortas, musses, macarons e outras guloseimas coloridas é um convite de forte apelo. Ela pede uma garrafa de água sem gás e uma musse com três tipos de chocolate. “Não sou muito preocupada com engordar. Mas mantenho algum controle”, conta Simone. O tempo que gasta sentada nas longas sessões da CCJ ou em audiências, ela procura compensar com caminhadas. Confessa, porém, que está longe de ficar obcecada pela prática de exercícios.
Ela saboreia o doce, o elogia e volta a analisar o presidente da República, que não atendeu ao pedido da reportagem para responder aos comentários da senadora até o fechamento desta edião. Para Simone, o motivo que a leva a acreditar que a gestão atual servirá apenas para fazer uma transição é a tensão que tomou conta do país neste governo repleto de sobressaltos. “A sociedade e os empresários vão pedir um pouco de paz. Eles estão ficando cansados de viver aos sobressaltos. Cansados de acordar todo dia e pensar: ‘Ai meu Deus! O que vai acontecer hoje?’”
O Congresso e a população, segundo ela, têm buscado se adaptar ao temperamento de Bolsonaro. “As pessoas estão começando a assimilar que ele é assim mesmo, a deixar de lado o que ele diz e a tocar o barco. O Congresso vai tocar a pauta econômica. O problema é quando ele fala, por exemplo, que a China não presta. Aí ele cria um problema da balança comercial que prejudica o país.” Se, por um lado, afirma Simone, isso é bom porque o Parlamento tem procurado seguir uma agenda positiva, por outro acaba por fortalecer ideias como a do “semipresidencialismo” ou “parlamentarismo branco”. “A política, aprendi desde jovem com meu pai, não aceita espaços vazios, e o recado que as urnas deram aos deputados e senadores foi bem claro: resolvam nossos problemas, senão não os aceitaremos mais’”.
Por isso, antes de receber um cartão vermelho dos eleitores, Simone diz que, ao ver a falta de articulação política, de habilidade para negociar e até de diálogo, o Parlamento resolveu assumir, na medida do possível, o comando da agenda que o país precisa. “A agenda do Congresso é a agenda do Brasil. O Congresso está assumindo o protagonismo e não vejo problema nenhum nisso. O importante é que os Poderes cumpram seu dever constitucional dentro das regras”, afirma.
Segundo Simone, esse protagonismo fortalecerá a democracia, reequilibrando as forças no país. “O poder que mais exerce o ativismo é o Judiciário. Suspendem monocraticamente uma lei que fazemos no Congresso, alegando que é inconstitucional. Sofremos também com o ativismo do Executivo que, desde sempre, baixa decretos que exorbitam seu poder, e medidas provisórias que nada têm de relevante e urgente.”
A senadora é casada com o deputado estadual e economista Eduardo Rocha (MDB-MS), com quem tem duas filhas, Maria Fernanda e Maria Eduarda. Conta que se acostumou a passar dias em Brasilia, longe de parte da família, que mora em Campo Grande, e de uma das filhas, que estuda em São Paulo. O trabalho no Senado é tão intenso, diz ela, que não dá tempo nem para sentir saudades. “Fui criada assim, com meu pai quase sempre longe de casa”, afirma.
Da infância em Mato Grosso, ela gosta de recordar os ensinamentos paternos. Mas, ainda que não fale disso em tom de crítica, se ressente dos rigorosos costumes libaneses da família, que não tinha por hábito gestos de afeto ostensivos. “Acho que meu pai nunca nos pegou no colo”, diz.
O rigor na educação, afirma Simone, foi fundamental para sua formação e para sua vida na política. Assim como o período em que foi professora marcou seu tom de voz, sua clara dicção e um ar de quem espera alunos obedientes. Na CCJ, mudou algumas regras, para evitar as intermináveis intervenções dos senadores e brinca: “Se precisar, uso a vareta”.
Já participou de muitas iniciativas em prol das causas femininas e de combate à violência contra a mulher. Mas assegura que nunca se sentiu discriminada, nem mesmo em sua casa, onde o pai tratava esses assuntos com “certa liberalidade” e igualdade entre os sexos. “Meu pai entendia o papel da mulher e do homem como iguais. Nunca o ouvi dizer que ‘não pode isto ou aquilo porque você é mulher’. Ele dizia que não se podia fazer algo porque não era honesto, decente, e isso valia para ambos os sexos”, recorda.
Nos últimos dias ela esteve dedicada aos trâmites da reforma da Previdência e à aprovação do nome do novo procurador-geral da República, Augusto Aras. Também está tratando do pacote anticrime, cuja discussão Moro aguarda ansiosamente. “Apesar de não termos começado a discutir, é evidente que o maior entrave à aprovação não é o aumento de penas ou do poder policial. O entrave está na prisão em segunda instância”, diz ela. “Não creio que possa haver um acordo sobre isso. O mais provável é que o tema seja desmembrado e entre em um outro projeto ou emenda à Constituição.”
Já atrasada para uma audiência, Simone diz esperar que esse momento tão crítico vivido pelo país sirva para uma profunda reflexão entre os homens e mulheres que seguem a vida pública. Ela diz acreditar que desta crise poderão surgir novos líderes, inclusive no MDB, que devolvam ao partido a dignidade de outros tempos, quando a legenda era comandada por Ulysses Guimarães e outros grandes nomes. Antes de ir embora, recorda o histórico discurso feito por ele em 1973, quando se lançou anticandidato do MDB à Presidência da República, desafiando a ditadura militar.
Em meio à emoção do ato de confronto e resistência, doutor Ulysses, como todos o chamavam, finalizava seu discurso, conclamando: “A caravela vai partir. As velas estão pandas de sonho, aladas de esperança. O ideal está ao leme e o desconhecido se desata à frente. (…) Nossa carta de marear não é de Camões, e sim de Fernando Pessoa, ao recordar o brado: ‘Navegar é preciso. Viver não é preciso’.”
A senadora diz que as palavras do ex-presidente da Câmara, que conduziu o partido na travessia desde os anos de chumbo à redemocratização, consagrada na Constituição de 1988, deveriam servir de inspiração ao que restou do partido hoje. “Não sei como. Não sei quando. Mas temos que encontrar um novo capitão”.